sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Massa: Misticismo e Mitificação



Um pouco de uma mestra que marcou minha graduação... nunca a esquecerei!

Gilda Korff Dieguez

"Um dos dilemas do pensamento moderno é exatamente o situar-se diante da massa: ignorá-la é impossível; aceitá-la significa a autodestruição. Não sabendo como resolver o impasse, apela-se para o triunfalismo ou a resignação. Comumente, os dois elementos aparecem juntos, trazendo, no estatuto ambíguo de sua constituição, a celebração das carências e de uma angústia não resolvida. Parece haver uma obsessiva necessidade do discurso, uma exibição vulgar e vazia da linguagem, uma prática apelativa do grito, demonstrando a perda da referencialidade. A denominada "elite intelectual" tenta, após a constatação da importância do tema para o século XX, articular um pensamento que dê conta, simultaneamente, do conhecimento e do reconhecimento. São discutidos os modelos, estruturas, efeitos, esquecendo-se do principal: a palavra continua sendo privilégio de uma minoria, que determina, literalmente, qual deverá ser a "palavra de ordem". A massa, mesmo, não fala: é falada.

Alguns discursos articulados insistem em se associar à massa de forma declarada; outros, mais puritanos, aparentemente fingem não estabelecer a relação. Querendo ou não, a denúncia de Orwell em 1984 já é uma realidade: mentes "gramofônicas" cada vez mais diminuem a amplitude do pensamento, trazendo a passividade para incapacitar um possível questionamento do poder. As falas proliferam, "duplipensantes"1, na suposta ordenação do mundo, em nome de uma democratização do saber; falta, porém, o principal: de nada serve o discurso se ele não ordena o sentido, só existente no resgate da historicidade concatenada. E, sem o sentido, o homem torna-se presa fácil do poder e da linguagem, posto que esta o reforça.

Querendo ou não, as falas, hoje, são contaminadas pelas estratégias de marketing. Acirrados debates e discussões sobre vantagens e inconvenientes deste ou daquele argumento vão-se tornando cada vez mais sofisticados e periféricos, piorando a situação das consciências confusas. A condição do homem moderno passa por uma crise situada, principalmente, na ordem da linguagem, fruto de uma perda da dimensão ética. Sabemos o quanto o capitalismo é incompatível com a mesma ética. No entanto, em nome do combate ao sistema, as tendências reproduzem o modelo: ou banalizam as coisas mais sérias, ou supervalorizam detalhes sem maior importância. A discussão sobre o "pós-moderno" já indicia, no seu "vale-tudo", um igualitarismo do "duplipensar": não há diferenças, mas parece haver diferentes. E, atuando em similaridade ao sistema da moda, os intelectuais permitem que peças e peças sejam superpostas, camada por camada, de modo a nada mais aparecer, senão a roupa.

Não nos compete resolver questões do pensamento moderno, pois tal gesto seria, no mínimo, pretensioso e incompatível com o espaço a que se destina o presente ensaio. A proposta, aqui formulada, é tímida, movida pela provocação e vontade de "entrar no jogo". Qualquer leitor astuto perceberá haver, ao longo das publicações da revista Cadernos, uma nítida preocupação dos textos em torno de questões básicas à reflexão sobre o poder, em um pólo, e a massa, em outro. Cada qual a seu modo contribui para lançar indagações sobre a relação entre o saber e a realidade de um mundo que parece nada querer saber. Preocupa-nos uma certa tendência, marcante, em fazer da massa um argumento para justificar o poder. Por outro lado, a prática da persuasão é forte e insistente, fazendo crer no sem-saída e numa certa apatia do homem comum, face ao problema.

Afinal, o que é a massa?"

Nenhum comentário:

Postar um comentário